O entendimento da organização e funcionamento das equipas implica uma visão de abertura à incerteza e ao imprevisto que o jogo transporta, assim como à constante necessidade de procura de soluções para novos problemas que o jogo nos traz. Assim, o entendimento da conceção de jogo da equipa vai para além de uma idealização dos processos mais eficientes para se jogar, normalmente expressos num modelo de jogo de caraterísticas relativamente fechadas ou estereotipadas. Sendo o modelo de jogo uma representação simplificada da conceção de jogo.
O futebol é um sistema aberto que é definido por um conjunto de elementos em interação dinâmica mas que possuem uma determinada estrutura. O caráter de oposição inerente ao jogo implica esta mudança de paradigma entre um modelo fechado e um modelo aberto uma vez que provoca a alternância entre momentos de ordem/desordem, continuidade/descontinuidade, equilíbrio/desequilíbrio, risco/segurança e desenvolvimento/atraso.
Perante a literatura, apresento a minha proposta de que uma conceção é dinâmica, não a podemos definir no início de uma época e levá-la exatamente igual até ao fim. A atual conceção de jogo está a ser influenciada por aquilo que se está a vivenciar no momento e todos esses fatores serão pequenos ou grandes contributos para a forma como irei conceber o jogo no momento seguinte. A conceção de jogo não é algo fechado, mas sim as opções que são tomadas pelo treinador relativas ao treino (que irão influenciar as decisões dos jogadores em jogo) e ao jogo.
Esta dinâmica constante de conceções de jogo (que não pode significar mudanças abruptas na forma de jogar, em prol de não abdicarmos da consistência de comportamentos) é aquilo que promove a evolução contínua das equipas, dos treinadores, dos jogadores e do próprio jogo de futebol.
A conceção de jogo, sendo dinâmica é composta sempre por duas dimensões: a retrospetiva, ou seja, aquilo que aconteceu no passado mas que nos influencia a todos os momentos e projetiva, ou seja, aquela que pretendemos colocar em prática.
No fundo, os aspetos que influenciam cada uma das dimensões não mudam assim tanto, contudo estamos a falar desses aspetos em momentos diferentes do tempo, nomeadamente:
– Constrangimentos cognitivos do treinador (filosofia, crenças, conhecimento), ambientais e sociais (cultura, memória e identidade da equipa)
– Memória da organização tático-estratégica que inclui:
– A organização estrutural e funcional
– Os princípios de jogo.
– As capacidades e caraterísticas dos jogadores.
Todos estes constrangimentos vão projetar uma conceção de jogo. Esta dimensão projetiva da conceção de jogo é o modo como a equipa pretende atuar.
A conceção de jogo é portanto um conceito dinâmico atualizando-se constantemente fruto das práticas vivenciadas (mas que no futuro farão parte de uma dimensão retrospetiva), caraterizada por:
– Cultura e identidade da equipa:
– A organização de jogo tático-estratégica:
– Princípios de jogo
– Organização estrutural e funcional
-Outros constrangimentos como o árbitro ou as condições climatéricas, as lesões podem, no momento, influenciar a organização tático-estratégica.
Aplicações Práticas:
Com isto, pretendo referir a importância da existência de uma linha de pensamento relativa à “forma de jogar” que seja coerente. Isto é, não sendo sempre igual, é importante existir uma linha condutora desde a conceção de jogo retrospetiva para a conceção de jogo projetiva, de forma a que a equipa retire o melhor das adaptações que vai sofrendo sem que, de forma alguma se mantenha “estática” e previsível na sua “forma de jogar”, formando-se uma equipa de maiores e melhores recursos ao longo do tempo.
Esta forma de pensar na conceção de jogo permite-nos, a nós treinadores, olhar para o fenómeno do jogo de uma forma dinâmica, sem nos esquecermos dos aspetos “retrospetivos” que influenciam o nosso presente e as decisões que iremos tomar. Em termos práticos, é fundamental, a sensibilidade para “medir” a capacidade de adaptação que estamos a pedir aos jogadores.
Será fácil entender que alguns contextos (e.g. formação) e alguns momentos da época (e.g. pré-época) são mais favoráveis a um maior “desfasamento” entre a dimensão retrospetiva e a dimensão projetiva, visto que o tempo para a promovermos será maior e o peso de eventuais resultados negativos, não será tão importante. Este “desfasamento” irá provocar uma maior sobrecarga nos atletas e treinador, uma vez que se trata de um momento em que será necessária uma maior capacidade de adaptação para corresponder à conceção de jogo que está a ser projetada.
Referindo casos concretos, quando treinamos uma equipa da formação, em que o resultado dos jogos não pode ser de todo o mais importante, poderemos considerar que pode haver uma maior diferença entre a forma de jogar em que os jogadores estão mais habituados e a forma de jogar que o clube pretende implementar, visto que o espaço para o erro em jogo é maior6.
Situação semelhante acontece numa equipa profissional na pré-época onde é tempo para pormos em práticas novos métodos, novas formas de jogar e os jogadores têm oportunidade de experimentarem em jogo sem a pressão de não poderem falhar devido ao resultado final do jogo7.
Ao longo da época, é importante esta constante dinâmica na conceção de jogo. Principalmente, quando cada vez mais as equipas são observadas e analisadas para se tentar perceber as suas dinâmicas e poderem ser anuladas8, porém, tal como referi, é fundamental para o treinador conseguir “medir” a intensidade de adaptação que exige aos seus jogadores de forma a não colocar em causa os resultados da equipa.
Dando um exemplo prático, não podemos exigir a uma equipa que tenha como conceção retrospetiva um jogo apoiado e muito denso na comunicação entre jogadores através de passes curtos para que, de um jogo para outro, passe a jogar segundo uma conceção projetiva que utiliza um elevado número de passes mais longos e ataques à profundidade através de passes realizados de zonas recuadas no terreno, uma vez que os jogadores não serão capazes de o fazer e isso irá ser prejudicial para o resultado da equipa7. Porém será importante introduzir nesta equipa pequenas dinâmicas que lhes permitam uma maior adaptabilidade caso sejam anuladas nos pontos habitualmente mais fortes, isto é, se uma equipa ataca bem de forma apoiada pelos corredores laterais, é importante que o treinador lhes dê ferramentas para também atacar bem de forma apoiada pelo corredor central, de forma a responder melhor aos novos problemas que os adversários lhe podem colocar.
É também importante entender quais os melhores momentos da época para introduzir um maior número de novos conceitos na equipa, função dos adversários, da importância e densidade dos jogos e prioridade que se dá às diferentes competições em disputa.
Termino, por dizer, que muitas vezes as equipas estão sujeitas a terem de se adaptar a mudanças que não foram possíveis de prever pelo treinador mas que influenciam a conceção de jogo projetiva (e.g. venda de dois jogadores titulares pelo valor da cláusula no último dia do mercado de transferência, subidas de jogadores de escalão, no caso do futebol de formação). Nestes momentos, será fundamental entendermos que existe uma grande exigência de adaptação a uma nova realidade por parte dos jogadores e que, o treinador terá de abordar o assunto, procurando evitar alterações que promovam adaptações ainda maiores à sua equipa, sendo fundamental a procura da estabilidade nos aspetos que se podem controlar, promovendo as alterações na equipa que sejam apenas necessárias, deixando para outro momento outras possíveis alterações que pretenda realizar.
Referências Bibliográficas:
1) Castelo, J. (1996). Futebol – a organização do jogo. Edição do autor. Lisboa
2) Grehaigne, J. F., Godbout, P. & Zerai, Z. (2011). How to “rapport the forces” Evolves in a Soccer Match: The Dynamics of Collective Decisions in a Complex System. Revista de Psicologia del Deporte, 20(2), 747-765
3) Leal, M. & Quinta, R. (2001). O treino no Futebol: Uma Concepção para a Formação. Braga: edição APPACDM de Braga
4) Oliveira, J. G. (2003). Organização do jogo de uma equipa de Futebol. Aspectos metodológicos na abordagem da sua organização estrutural e funcional. Documento apresentado às II Jornadas Técnicas de Futebol da UTAD. Vila Real
5) Sarmento, H., Pereira, A., Matos, N., Campaniço, J., Anguera, M. T., Leitão, J. (2013). English Premier League, Spain’s La Liga and Italy’s Serie’s A – What’s Different?. International Journal of Performance Analysis in Sport. 13, 773-789 6) Lage, B. (2017). Formação – Da Iniciação à Equipa B. Prime Books. Estoril
A versão completa deste artigo encontrar-se-á na 3ªedição da revista a ser lançada em junho.